domingo, 10 de abril de 2011

APREÇO

por Ricardo Gnecco Falco


O cargo era o mais difícil de definir.


Falava a empresa, o local de trabalho, tamanho da sala, benefícios... Mas, quando revelava o valor do salário, era inevitável a pergunta sobre o emprego. Afinal, por mais famosa, gigantesca e importante que fosse a corporação na qual trabalhava, ninguém poderia receber uma soma como a que ele dizia ganhar por mês.

E olha que ainda mentia para menos; bem menos...

Contudo, recebendo um valor tão vistoso e superior aos maiores ordenados de cargo público de seu país, como os de juízes do Supremo, desembargadores; a remuneração do próprio presidente da República... Era mesmo impossível não causar tamanha surpresa.

E nem revelava o salário, mesmo a menor, para qualquer um. Somente alguns poucos familiares e amigos mais próximos. Nem sua esposa conhecia a quantia correta, embora não precisasse se preocupar com isso, pois como era de se esperar, não lhe faltava nenhum bem, qualquer bem, que quisesse ter. E nunca na vida pensara que um dia, qualquer dia, fosse usufruir de tanta fartura.

Mas, nem tudo tinha preço.

Este era o caso do trabalho dele. Simplesmente, não tinha preço. Fazia-o porquê gostava e porque ninguém mais no país inteiro, ou qualquer outro país, o exercia tão bem quanto ele. Era algo como um dom, uma dádiva recebida sabe-se lá de onde ou de quem. Um poder que somente ele, e ninguém mais, possuía.

Ele era único.

Trabalhava com publicidade. Mas, não era publicitário. Na verdade, nunca sequer produziu qualquer peça publicitária. Nenhuma campanha, nenhum anúncio... Nada. Mas trabalhava, diariamente, com propaganda(s). Todas. Via de regra, com as mais caras e melhor produzidas. Tinha contato direto com os melhores profissionais da área. Conhecia e era reconhecido à distância pelos mais renomados marqueteiros do planeta.

Na verdade, era disputado a tapa por todos eles.

Transformou-se, em muito pouco tempo, em um mito. Já tinha gente que até desconfiava de sua existência. Mas ele existia; estava lá. Trabalhava naquela megaempresa de televisão que parecia mesmo tentar desviar todo e qualquer alarde sobre a sua pessoa e, principalmente, sobre a função que ele desempenhava ali.

Virou objeto de estudo e havia até uma equipe contratada para, simplesmente, acompanha-lo no dia a dia, com a secreta função de analisar seu trabalho; tentar entender as escolhas e decisões que tomava.

Era, definitivamente, um mestre.

Tinha curso superior, é claro, mas em outra área, completamente diferente da que ocupava ali. Tornara-se a maior referência da atualidade no ramo, sem sequer ter feito um único curso com aquela especificação.

Era formado em música.

Música clássica. Tocava peças musicais dificílimas já aos sete anos de idade, debruçado sobre o piano velho da tia-avó, herança de família. Um piano que nenhum ente querido queria guardar. Um elefante branco no meio da sala e que ninguém gostava, ou se interessava. Somente ele.

Apreço.

Então, aos vinte e três, a ruptura de seus maiores sonhos... Um acidente de carro no carnaval o obrigara a uma dolorosa estadia no CTI de um hospital. Vários meses. Vários ossos quebrados, principalmente nas mãos e braços. E vários membros da família a menos. O sonho de ser músico levado juntamente do pai, mãe e irmãos naquele fatídico cruzamento.

Recomeçou do zero. Reaprendeu a andar, falar, pegar... Até a sorrir novamente, com a chegada de Mariana em sua vida, pouco tempo depois; ao lado de quem estaria no altar, maternidade e ao final de cada novo e belo dia de vida.

Só não deu mesmo para voltar a tocar.

Mas, como diz o ditado, quando uma janela se fecha, portas se abrem. E Paulo nem percebeu ao entrar no mundo que hoje tão bem lhe faz. E que tão bem o faz, também. Começou meio sem querer, ao sugerir a um amigo, que trabalhava em uma agência, que alterasse a ordem de exibição de um anúncio, veiculado na televisão.

Tal anúncio aparecia sempre após outro, que terminava de uma forma que o incomodava, pois não só apagava a ideia da primeira propaganda, que deveria ficar na cabeça do público, como também revertia a mesma, afastando o consumidor do produto, ao invés de aproximar.

Tudo por causa de uma simples questão de arranjo.

“O compasso está errado”, dizia ao amigo, que se interessou pela sugestão e, ao atentar-se para as demais colocações recebidas, vislumbrou algo ali que até então jamais enxergara. Nem ele, e nem ninguém que conhecia. Era uma ideia totalmente nova, um novo conceito. Algo que, embora óbvio, seria inovador.

A quebra de um paradigma.

E assim foi contratado. Pela primeira vez na vida, entrou em uma agência de propaganda. Foi apresentado pelo amigo aos profissionais da área responsável pelo fechamento dos contratos com as mídias e, também pela primeira vez, um contrato foi firmado com algumas poucas e até então estranhas cláusulas a mais. E que mudariam por completo não apenas sua vida...

Mas também todo o modus operandi da publicidade contemporânea.

A agência do amigo tornou-se pequena e os convites de trabalho começaram a chover de diversos segmentos do mercado. Empresas privadas, grandes organizações corporativas, indústrias, conglomerados multinacionais, redes de comunicação...

Até chegar ao cargo e empresa atuais.

Ele orquestrava, de modo espontâneo, natural e subliminar, a ordem dos anúncios pagos pelas patrocinadoras para irem ao ar. Rarefeito naquela emissora, diga-se de passagem. Cortava alguns, repetia outros, misturava partes, sons... Silenciava imagens. Floreava tons, semitons. Fazia arte sobre a arte com total liberdade e domínio.

Incomparável.

Montava um caminho na apresentação ao público das peças que, ao final do intervalo, juntamente de sua massiva exposição, deslumbravam cada vez mais e mais consumidores e, consequentemente, anunciantes.

Estupefatos.

Conforme constatado por especialistas, as mesmas peças publicitárias, em outros canais e redes televisivas, não surtiam o mesmo efeito, o mesmo impacto nos sentimentos do público, que causavam ao serem apresentadas, após seu arranjo, na emissora onde trabalhava.

Era, realmente, um dom.

Sua função, oficializada na tabela de cargos e salários da empresa, para estranhamento de todos os que tinham acesso às informações sigilosas da corporação ou aos holerites, estava assim definida:

Maestro.

* * *