sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Oito de Copas

por Ricardo Gnecco Falco 

Ernesto suava sem parar diante da churrasqueira...

Estava com a turma da faculdade em uma espécie de confraternização de fim de período.  O sítio do colega anfitrião ficava ao lado de uma enorme pedreira e, além do calor absorvido pela gigantesca montanha de pedra durante todo aquele dia, somado ao bafo oriundo das brasas sobre as quais eram assadas as carnes, havia ainda o abrasivo efeito da meia dúzia de caipirinhas que já tinha tomado.

Tudo isso, no final daquela típica tarde de verão, fazia Ernesto sentir-se realmente desconfortável. Mas, mesmo consciente de todas estas variantes, o rapaz sabia a verdadeira origem das infindáveis gotas que brotavam por toda a extensão de seu corpo; uma infinita nascente viva...

Ernesto tinha um pronunciamento a fazer.

Iria abandonar o curso de engenharia que já estava em reta final para, surpreendentemente, mudar de forma radical sua futura carreira. Ernesto queria graduar-se na área de humanas. Na verdade, já havia até feito a prova para ingressar na nova faculdade. Sentia uma incontrolável vontade de entender o comportamento das pessoas.

Psicologia...

E abriu para todos ali que a decisão tomada devia-se ao ocorrido naquele mesmo sítio; na mesma mesa de madeira que agora servia de base para os incrédulos olhares de seus amigos, que lhe fitavam num silêncio típico de quando se conhece a imutabilidade de um fato concreto.

Concretamente absortos.

Também fora ali, naquela mesa, após algumas latinhas sorvidas numa noite quente do verão passado, que Ernesto experimentara pela primeira vez a estranha sensação que tentava agora, um ano após, definir em palavras para seus amigos...

Onisciência.

Foi a única palavra encontrada. Assim como apenas um fora o número visualizado em sua mente; na forma de uma curiosa sombra a projetar-se sobre a fina parede de plástico que tinha à frente. Jogavam baralho naquela mesma mesa incrédula de agora, na qual outrora Ernesto, inacreditavelmente, concebera a imagem do número pintado do outro lado da carta.

Era um oito; escuro.

De paus ou espadas... Um oito negro. A carta estava apoiada de lado sobre a mesa, segura pelas mãos de uma colega de turma; hoje ausente. Mais do que ver, Ernesto, inexplicavelmente, “pré” sentira o que existia do outro lado daquela matéria...

Um oito de espadas.

Pensara tratar-se de algum estranho efeito etílico. Mas já no dia seguinte, durante o café da manhã, a ressaca apresentar-se-ia ainda mais poderosa, fazendo Ernesto passar toda a primeira metade daquele revelador domingo sentado sozinho diante da piscina, numa cadeira na varanda, brincando de embaralhar aquelas bizarras cartas esquecidas no canto da cozinha.

Todas transparentes...

E das cartas passara então a intuir os números discados nos telefones celulares dos amigos, mesmo quando virados de costas para ele. Visualizava os algarismos no mesmo ritmo de pensamento dos autores das discagens.

Já lhe surgiam de forma quase natural.

Sua brincadeira predileta tornara-se a adivinhação. Mandava os amigos, familiares, a futura noiva... Cada um sentar-se diante dele e, concentrando-se, pedia para pensarem em um número. Qualquer número...

Ernesto adivinhava.

No início, ainda restavam algumas dúvidas. Mas, seus amigos mais próximos, e principalmente sua noiva, acabaram aceitando aquele instigante fato. Ele acertava mesmo... Vez ou outra tentavam encontrar alguma falha, algum “defeito”. Sem prévio aviso, mostravam-lhe nas ruas carros desconhecidos, de ângulos pré-determinados; qualquer carro...

Ele falava os números da placa.

O jogo na televisão começava e era só o placar aparecer zerado pela primeira vez no canto da tela; qualquer jogo...

Ele predizia o saldo de gols da partida.

Rápida e faceira, Raquel — a noiva — apareceu certa ocasião com um canhoto de loteria vazio. Deixou-o, como quem não quisesse nada, em cima da mesinha de cabeceira do quarto de Ernesto, após uma intensa, voluptuosa e atípica noite de sexo.

Raquel estava com um sorriso misterioso...

Mas foi somente naquele momento, contando para os amigos sobre o histórico que o levara à decisão há pouco anunciada, que Ernesto atentou-se para o significado do primeiro número adivinhado naquela mesma mesa, um ano atrás. O primeiro presságio...

Um explícito agouro.

Um oito, invertido e negro. Tenebrosa alegoria. Genuíno símbolo de infinito. Infinitamente sombrio. Uma enfadonha profecia sobre seu futuro e inglório relacionamento com Raquel, colega de turma que empunhava aquela carta e por quem era apaixonado, desde o primeiro período. O representativo fiel de seu trágico noivado...

Oito de espadas.

Raquel por fim confirmaria aquele prognóstico, revelando sua verdadeira face. E frieza. Com oito dígitos na conta, fugiu não se sabe até hoje para onde com um ex-namorado, do tempo do colégio. Deixou para trás apenas uma negra espada fincada no coração atormentado de Ernesto, que nunca mais se utilizou do dom recebido.

Sina.

Ernesto agora buscava conhecer a essência humana. A beleza da alma. A mansidão. O atrativo e seguro caminho das virtudes. O ser antes do ter. A imensidade e onipotência do Amor. Ilimitável; eterno. Sim... Ainda procurava o infinito.

O que Ernesto queria mesmo era encontrar um oito de Copas.


* * *


sábado, 7 de novembro de 2009

ENTREVISTA



A Câmara Brasileira dos Jovens Escritores (CBJE), editora que vem há anos reuindo em suas antologias (agora mensais) uma parcela significativa da produção literária dos novos autores nacionais (e onde foram publicados todos os meus contos aqui expostos), recentemente fez uma entrevista comigo.

Deixo abaixo o link para a página da editora onde a entrevista com quem vos escreve foi publicada. Quem quiser conferir é só clicar abaixo:


Entrevista com o autor


Grande abraço em todos,


Paz e Bem!

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Um reles traço...

por Ricardo Gnecco Falco
De:   Ana Carolina <carolzinha@rothymail.com>
Para: Lista Formandos <formandos2009@inhauugrupos.com.br>
Cc:   Bruno <bruno.salles@rothymail.com>
Cco: Rotozão <rogerio.sena@vmail.com >

Assunto: Contagem Regressiva!!!


Oieee...
Td bem galera?!  Faltam menos de dois meses para a nossa formatura!!!
UH-HUUUUULLLL!!!!!!!!!

Gente...
Como todo mundo sabe, eu me caso daqui a dois dias. Todos vcs já receberam o convite e, pela lista de confirmação que vi ontem, a grande maioria estará lá!!!
Estou muito feliz... Minha vida está parecendo um conto de fadas! Parece mais um sonho do que realidade... Estou vivendo o melhor momento de minha vida... Realizando o maior desejo que qualquer pessoa pode ter... Estou amando, e sendo amada!
Mas sei também que, quando alguém está tão feliz como eu estou, acaba provocando certos sentimentos em algumas pessoas que, inexplicavelmente, passam a querer destruir, a todo custo, a felicidade de quem nunca fez nada de mal para elas.
Fui na facul na terça e, como tinha o primeiro tempo vago, decidi passar na biblioteca para checar alguns e-mails e resolver algumas pendências típicas de quem está prestes a se casar... E qual não foi minha surpresa ao abrir minha caixa de msgs e me deparar com aquilo?!?
Sei que vcs já sabem do que se trata, pois a mesma coragem que a pessoa não teve para se identificar, teve em ousadia para enviar o e-mail para (toda!) a nossa lista de formandos, criada para servir de ferramenta facilitadora para os arranjos e decisões a serem tomadas de comum acordo, em prol de nossa festa de formatura.
Foi um ato covarde. Covarde, cruel e infrutífero, pois é tudo mentira! E tenho certeza -- cer-te-za! -- que nenhum de vcs, até mesmo os que não tenho muito contato ou muitas afinidades, acreditou em sequer uma linha daquela mensagem!
Todos vcs sabem que eu nunca -- nunca! -- fiquei com o Rogério e, na última festa de arrecadação citada no e-mail, naquele sítio lá em Vargem Grande, eu saí logo no início, pois estava passando muito mal. Jamais poderia “ter sido vista dentro da picape dele, no estacionamento”, depois do show da banda, que só foi terminar de madrugada (!), como fiquei sabendo depois.
No aniversário da Amanda, naquela boate na barra, eu sequer esbarrei com ele! Fiquei o tempo todo na mesa com o Bruno e, quando ele foi embora (pois ele acordava cedo no dia seguinte; e não por termos brigado por eu ter bebido demais, como insinua o e-mail), eu só fiquei mais um pouco para não chatear a Amanda e voltei de táxi para casa, e não de carona com o Rogério (que nem sequer vi na festa!!!).
E todas; todas as demais insinuações e infundadas “provas” contra mim que o anônimo “delator da verdade” (como se auto-intitulou) escreveu, não passam de uma invejosa e frustrada tentativa de acabar com a alegria que, certamente, este desprezível ser jamais experimentou em sua deprimente vida.
De minha parte, esta pessoa é digna única e exclusivamente de pena; um sentimento que consegue ser ainda pior do que a inveja que claramente domina o coração e escraviza a mente desta infeliz alma “delatora da verdade”.
Por isso mesmo, não vou deixar que esta infeliz criatura estrague o mágico momento que estou vivendo e, ao invés de me abater, venho aqui reforçar o convite e dizer que espero encontrar todos vocês lá na igreja, quando finalmente entrarei para o time das (bem!) casadas!! Né, mozi?! (rs!)
E, depois da cerimônia, quero ver todo mundo lá no clube para nos acabarmos de vez na festa!!!
UH-HUUUUULLLL!!!!!!!!!
Nos vemos no sábado!!!
Beijinhos,
Carol.
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Rothymail agora ainda melhor: 30MB, anti-spam e antivírus grátis!

. . .

Este foi o e-mail que Carol mandou para todos.

Todos que receberam a tal difamatória mensagem... O anônimo e covarde e-mail que foi intencionalmente copiado para todos seus colegas formandos e, também, para seu noivo.

O Bruno.

Agiu precipitadamente, sem dúvida. A demasiada preocupação em desmentir o que fora escrito na tal mensagem anônima certamente acabou por complicar ainda mais a situação de Carol. Pois, como se diz num famoso provérbio, quem não tem nada a dever é exatamente quem não tem nada a temer.

E Carol temeu...

Tudo bem que ela estava nas vésperas de seu casamento com Bruno e, talvez exatamente por isso, não podia dar-se ao luxo de permitir que mal-entendidos continuassem mal entendidos. Ela tinha mesmo que explicar tudo. Para os colegas e, principalmente, para seu noivo...

O Bruno.

Porém ─ e em toda história que se preze sempre existe um porém ─, o que Carol não sabia é que Bruno nem havia lido o e-mail original. Na verdade, ele não se interessava pelas trivialidades da internet já fazia bem umas duas semanas. Só tinha olhos para a noiva; já quase esposa. E só ficara sabendo da existência do dito cujo exatamente na véspera do casamento, ao encontrar uma mensagem da amada em sua menosprezada caixa de entrada. Pensara até tratar-se de algo sobre o casamento, tão próximo e já latente. Ainda mais com aquele título...

Contagem regressiva!!!

Mas, não... Era o e-mail de resposta que Carol, precipitadamente, enviara a todos da lista. Todos os que, supostamente, teriam recebido a tal difamatória mensagem; o e-mail anônimo e covarde que julgara ter sido direcionado para todos seus colegas formandos e, em cópia, também para seu noivo. O Bruno. No entanto, o fato é que...

Apenas Carol recebera aquele primeiro e-mail.

Até hoje não se sabe se o inominado autor confundiu-se ao preencher o cabeçalho da mensagem, ou se, descartando-se a opção de que tudo tenha sido proposital, aconteceu realmente algum tipo de falha no envio da mesma, fazendo com que, despercebida e ironicamente, apenas a própria vítima recebesse aquele revelador e incômodo e-mail.

Na verdade, todos os demais endereços eletrônicos inseridos naquela amarga mensagem tinham um simples, porém importantíssimo, detalhe... Um imperceptível “_underline”, colocado antes do início dos nomes dos destinatários, diferenciando-os assim dos endereços de e-mail verdadeiros.

Um reles traço...

Linha baixa; sorrateira trilha. Exatas incertezas transbordantes de um suposto rio... O infinito devaneio de um inconsciente coletivo. Automáticas conseqüências de um inesperado enlaço.

Se Carol tivesse conseguido vencer seu vício diário de acessar a internet e, principalmente, o impulso de reagir imediatamente àquela fatídica mensagem, ou sabe-se lá por qual outro motivo, nada do que acabou acontecendo na vida desta atormentada jovem teria acontecido. Ou melhor...

Não acontecido.

Tudo em decorrência daquele instintivo ato, de imprevistas implicações... Impensado traço, de irrefletidas seqüelas... Pois só o que se sabe até hoje é que rolou um ti-ti-ti e tanto no dia seguinte, na aula. E outro maior ainda quando o casamento foi adiado.

Sem data marcada...
 
* * *


segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Desespelho...

por Ricardo Gnecco Falco

Era estranho...


Beijava bocas sem rostos como se buscasse o antídoto para uma latente dor. Explorava corpos desprovidos de nomes e em suas toscas pilhas me perdia. Trilhava caminhos opostos, impostos; sobrepostos... Chafurdava na lama impiedosa da madrugada, mergulhando de cabeça nos bueiros, poços. Chegava a ser poético, mas insano.


Dor de amor.


Ter de passar por tudo isso, para só então começar a me perguntar: Para quê? Ter que atingir o fundo e só lá embaixo descobrir que fora eu mesma a saltar... Estar dentro de uma situação claustrofobicamente real e então perceber que na realidade fora eu mesma a me trancar ali. Era tudo tão simples. Tudo tão complexo...


Tudo tão contraditório.


O telefone tocava. Vibrava. Roía. Escandalizava... Minha cabeça girava. Sentia o gosto na boca borrada que o espelho em primeiro plano delatava, escondendo a metade do corpo tombado e exaurido sobre a cama, ali atrás... Recompensado. Entorpecido.


Eu queria que tudo fosse diferente.


Que fosse tudo diferente... Olhava-me no espelho daquela espelunca e não me encontrava do outro lado. Na verdade não sabia mais de que lado estava; qual era o lado certo... Onde estava? Quem eu era? Por que fizera aquela tatuagem horrível que a menina do espelho me mostrava? E quem eram os caras deitados na cama, ali atrás? Não...


Não sabia mais quem eu era e nem o que eu fazia.


Aliás, o que eu fazia ali...? Que lugar era aquele? O que eu havia tomado...? Eu não queria ter estado no meio de toda aquela gente. Não sabia se atendia aquele maldito telefone, ou se me escondia. Eu não queria ter estado ali! Humilhada... Usada... Eu só queria que tudo aquilo fosse diferente.


Vil.


Eu estava magra. Engraçado... Sempre quisera ser magra. Passara a adolescência inteirinha lutando contra a balança; me contendo, segurando. Sempre desejara ter um corpo assim. Mas não assim... Sabe quando a gente se olha e não acredita que seja a gente naquela foto? Era assim que eu olhava pra mim naquele espelho... Sempre quisera ter um corpo daquele. Sem nenhuma gordurinha. Mas não daquela forma. Não daquele jeito. O corpo tão sonhado...


Em meio a um pesadelo.


Não sei quanto tempo fiquei olhando para mim mesma, dentro daquela pocilga; diante daquele espelho que parecia quebrado. Aquele maldito telefone se esgoelando... Talvez o tempo necessário para que eu pudesse me reconhecer naquela imagem. Despertar. Sem a maquiagem, a máscara... Assustadoramente real. Encontrar-me. Descobrir-me. Ali, nua, durante um curto período de lucidez.


Ensandecidamente lúcida...


Eram doses pequenas no início. Passavam quase que despercebidas. Imperceptivelmente absorvidas. Depois era o efeito a passar rapidamente. Tão rápido que nem mais se fazia sentir. Não... Não estou falando sobre drogas. Também não estou afirmando que não as usasse. Mas nenhuma delas poderia sequer aproximar-se do efeito que as tais lembranças surtiam em mim. Eu repassava as cenas em minha mente... Uma a uma.


Confusa mente...


Geralmente quando acordava. Era quando a cabeça parecia estar ainda livre do cimento que a insana realidade, no final do dia, como um fardo insustentável, em minha mente incutia. E só nos dias bons isso acontecia. Pois a dor de cabeça, normalmente, já me acompanhava desde quando levantava. Assim como a ressaca, o enjôo, a tontura...


A culpa.


Poesia. Herege; mundana... Mas poesia. Eu abrindo os olhos e encontrando... Ele. Os objetos, assim como as pessoas, passando como se estivessem, todos, em câmera lenta. E m c â m e r a l e n t a . Era sempre ele... Como o vento, seus dedos acariciando meus cabelos, sua voz doce reverberando em meus ouvidos junto ao som da melhor banda de rock do mundo...


O telefone não parava de tocar.


... Salvando-me; resgatando-me daquele matinal momento perdido, onde eu não era eu. Onde o que eu fazia não era eu a fazer. Onde o que eu queria era nada mais querer... Nada além de estar ali, com ele... Nos braços dele novamente. Segura...


Salva.


Era o instante eternizado no fundo de minha mente. A fronteira final de minhas lembranças. O derradeiro território. A essência da minha alma. O meu sonho mais real. O estar sendo; tendo sido, para sempre... Perfeito. O Nirvana...


A mentira.


Brotavam então as cenas que se misturavam à realidade daquele sonho; como se tudo fosse um devaneio irreal; mesmo que irremediavelmente verdadeiro. Os flashes, sussurros, gemidos... Os corpos em cima do meu... Dançando como que enlouquecidos. Enlouquecida. O entra e sai lúdico, sentimentais espasmos cleptomaníacos. Roubando-me de mim mesma; assaltando-me, levando-me... Munidos apenas da arcaica sofreguidão.


E desespero.


Alçando um vôo imaginário chegava ao fim de mais aquela noite, em silêncio profundo. E do mundo, lá de onde saltara rumo ao meu, vinha o som do telefone que me caçava e enlaçava como a um objeto sem graça, sem vida... “Fria”, um toque me dizia. Lá do fundo... Da superfície plana e macia, a me olhar de cima; superficialmente.


O espelho.


Encarava os olhos que me encaravam e não me viam; que enxergavam apenas a imagem despontada, com extrema apatia. “Frígida?”; “Insensível?...” Como eles ousavam acusar-me enquanto eu não apontava ninguém?! Eu não recusava ninguém! Irritava-me isso... Mesmo. Queria fechar os olhos novamente.


Mas eu já era refém...


Tentava sair dali; daquele emaranhado de restos, noites... Daquela fartura de carnes, guimbas, sexos... Daquele vazio compulsivo e gelado. Meu corpo é que já não aceitava mais. Meus olhos, naquele amórfico pedaço de vidro, também não brilhavam mais. Minha mente, disforme, já não me refletia mais...


Estava doente.


Física, mental e espiritualmente. A fuga, remédio ineficaz, já não me levava adiante. Não mais. Queria atirar longe aquele maldito telefone que não parava de tocar, avisando sobre o término de mais um período... Mais um pedaço vendido. Perdido. Não conseguia achar minhas roupas, nem apoio nas paredes que me cercavam. Que conspiravam, me prendiam; delatavam...


Queria era poder ir embora.


O corpo tombado, vencido; o olhar a fixar-se numa cadeira vazia. Solitária como cada um ali dentro daqueles quartos, a esperar por um colo que nunca viria. Sabia muito bem disto... O gosto amargo na boca, a azia... Eu queria muito sair dali, de qualquer jeito; simplesmente levantar e caminhar. Quebrar aquele espelho. Atravessar aquela porta. Sem rumo ou plano. Mesmo sem volta.


Eu só queria ir embora...


* * *

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Digressão Perigosa

por Ricardo Gnecco Falco

Ronaldo era uma pessoa bem distraída...

No entanto, já na saída do túnel, percebeu que havia algo errado. A pista à sua frente estava completamente vazia, assim como toda a travessia feita pelo interior do imenso vão que deixava para trás.

Fixou o olhar no retrovisor do carro.

Cada segundo passado sem avistar sinal de outro veículo, à frente ou atrás do seu, reconfirmava aquela primeira impressão, responsável pela crescente e involuntária força exercida em seus músculos temporais.

Ronaldo sentiu a vista adaptar-se à claridade do ensolarado dia e, já de posse da certeza que alguma coisa estranha estava realmente acontecendo por ali, reduziu a marcha do veículo.

Ele só não sabia ainda o que era.

O incômodo vazio, atípico no trânsito de fim de tarde carioca, especialmente naquele ponto da cidade — que ligava a zona sul à uma via expressa —, levou Ronaldo a diminuir ainda mais a velocidade de seu carro; quase parando no meio da rua deserta.

Até que notou o brilho...

Trazendo ainda menos veracidade ao cenário apocalíptico no qual se encontrava, Ronaldo visualizou alguns vaga-lumes próximos ao asfalto, à frente do automóvel, como se desprovidos da informação sobre o horário local. Ou talvez confusos, devido à ausência do costumeiro fluxo de veículos...

Pirilampos diurnos.

Somente então distinguiu um carro branco de reportagem, com a logo de uma emissora de TV estampada na lataria, parado mais adiante, à esquerda da pista. Aparentemente, gravavam alguma matéria, pois Ronaldo acompanhou a corrida de um homem, carregando uma câmera de filmagem, e uma mulher, muito bem vestida, com o que parecia ser um microfone na mão. Os únicos seres-vivos avistados por aquelas bandas, além dos estranhos vaga-lumes...

Seria uma reportagem sobre este bizarro fenômeno?

Na verdade, pareciam temerosos... Ambos, câmeraman e repórter, pararam agachados ao lado do carro da emissora e, se realmente filmavam algo por ali, só poderia mesmo ser alguma coisa bem pequena sobre o asfalto.

Pequenina e perigosa.

O fato é que, ao aproximar-se mais da dupla, mantendo a baixa velocidade de seu veículo, Ronaldo pôde perceber a expressão de espanto que figurava nas feições dos dois; como se o casal sofresse um inesperado ataque por parte dos curiosos pirilampos que, em maior número agora, piscavam bem próximos da atônita dupla.

Contato visual estabelecido...

Ronaldo não conseguiu evitar o encanto recebido daquela repórter. Lindíssima. Os olhos azuis abertos ao máximo, fitando-o; revelando todos os seus segredos num instante de êxtase que parecia sem fim. Tudo em câmera lenta... O olhar fixado nele como se o desejasse mais do que a própria vida. Encarando-o sem empáfia; o hipnotizando de imediato.

Por completo.

Foi quando os dois veículos se emparelharam e, durante a eternidade que um único segundo pode conter, pela janela de seu carro, Ronaldo vislumbrou o quadro mais perfeito dentre todas as imagens que até então julgava conhecer.

Déjà vu.

Sentiu por inteiro o impacto daquele momento. Um insólito elo cuja ruptura, no instante seguinte, queimou-lhe por dentro, criando um mal-estar súbito que Ronaldo imediatamente tentou desfazer.

Inquietação...

Numa busca quase que animalesca, voltou os olhos para todos os retrovisores de seu carro, o de dentro e os de fora, procurando restabelecer o mágico contato que o fizera sentir-se a meio passo da perfeição.

Reencontrou o veículo branco pelo qual acabara de passar somente no espelho esquerdo; pequenino demais para permitir uma boa visualização daquela que fora a responsável pelo instante mais intenso de toda a sua vida. A magia daquele olhar...

Penetrante.

Profundamente alterado, Ronaldo tentou enquadrar o cândido automóvel no retrovisor central de seu carro — maior e menos indigno para aquele glorioso fim. Porém, na dolorosa busca pelo posicionamento ideal de seu corpo, que o permitisse avistar a agora já dona de sua sanidade física e mental, Ronaldo acabou deparando-se novamente com a enorme e negra boca de onde havia sido cuspido diretamente para aquele deserto.

O imenso vão.

Num calafrio, percebeu as diversas construções sobre a abismal galeria do túnel, reveladas somente então pelo espelho. Na verdade, casebres. Inúmeros. Sobrepostos; confusos. Tudo misturado e exposto. Pedaços de madeira, concreto, tijolos...

Favela.

E, do mesmo modo que antes, Ronaldo viu fulgurar, agora também dentro daquele pedaço de vidro refletor, o brilho tão característico aos supracitados insetos reluzentes... Uma verdadeira infestação de pirilampos que parecia querer tomar conta de todo o morro atrás do carro, acima da saída do túnel, repleto de pontos luminosos.

Flamejantes marcas destacavam-se na indigente paisagem sobre a meia-lua negra e soturna. Centelhas cintilantes invadiam ruelas e agrupavam-se de modo amorfo e insólito. Um endêmico ataque àquela comunidade menos favorecida. Uma epidemia de chispas na favela. Invasão insana; fulgente. Sobrenatural.

Luzes sobre a escuridão.

Guiou o carro apenas pelo instinto. Dirigiu dezenas de metros sem atentar-se para o que viesse adiante. Olhos vidrados no retrovisor central. Olhava para frente, mas pelo espelho lhe era revelado tudo o que ficara para trás...

Como se não houvesse mais futuro.

Com a razão extinta, à imagem e semelhança dos imperceptíveis cacos de vidro espalhados sobre o banco traseiro do carro, sem ainda conseguir juntar os pedaços daquele verdadeiro enigma, Ronaldo tombou sobre a direção.

Não sentia mais o peso do corpo.

Na verdade, não sentia mais nada. Nada além de saudade. Saudade daquele rosto, de feição misteriosamente angelical; de olhar reluzente e enigmático. Alaranjadas fagulhas em meio a uma imensidão azul... Ensandecidamente belos. A boca entreaberta e inverossímil, na eterna dúvida do movimento. Os lábios vermelhos... A mente divagando...

Sem som; sem tom; centrada.

O momento exato da ultrapassagem. Etéreo instante. O vento sutil a balançar os fios loiros sobre a perfeição da pele alva. A súplica daquele olhar derradeiro... Um toque sublime a percorrer toda sua espinha, num aguçado carinho... A unha feroz cravando-lhe a pele num afago algoz; a ferroada nas costas...

O delírio.

Ronaldo emergiu no interior daquele carro, já quase sem embalo. O som dos estampidos próximos e o calor de rubra intermitência foram seus últimos companheiros. Não viu a barreira de veículos perfilados mais à frente, nem as dezenas de oficiais fardados, fartamente armados, em irracional revide.

Ronaldo perdeu-se no frescor daquele rastro...

Dormiu ninado pelo tilintar metálico dos fuzis em meio ao nauseante hálito de pólvora que invadiu o automóvel, instantes antes de parar na reforçada lataria de uma das viaturas que bloqueavam o trânsito daquela importante e desolada via.

Uma verdadeira operação de guerra.

No noticiário da noite, figurou entre as vítimas fatais de mais aquele confronto urbano. Bala perdida. Uma jovem repórter relatou, emocionada, os momentos de perigo vividos por ela e seu companheiro de equipe. Ambos surpreendidos pelo intenso tiroteio ocorrido entre a polícia e os traficantes invasores que tentaram tomar posse dos pontos de venda de drogas daquela afamada favela.

No carro de Ronaldo foram encontrados — além das diversas perfurações de bala — pedaços de tela, pincéis, cavaletes de madeira, recipientes com tintas de inúmeras cores e uma pasta repleta de folhas de papel, contendo vários desenhos, de diferentes temáticas.

Alguns destes desenhos que estavam no interior do veículo da vítima foram mostrados na reportagem, de cunho extremamente emocional. Dentre os mesmos, destaque especial foi dado pela repórter, visivelmente alterada, a uma série de inacabados esboços, nos quais o falecido artista parecia estar trabalhando. Todos retratavam a figura de uma bela e enigmática jovem.

De lindos olhos azuis...


* * *


sexta-feira, 12 de junho de 2009

O Menino

por Ricardo Gnecco Falco

Pela janela do carro passavam os prédios, enfileirados. Imponentes, resistentes, pacientes. Misturavam-se ao azul do imenso céu que se sobrepunha a todo o cenário em volta. Eram como mergulhadores de concreto sobre trampolins de rua, à beira de uma enorme piscina às avessas.

O garoto estava sentado no banco de trás do veículo, olhando para cima, mas parecia flutuar à frente de tudo aquilo; admirado com a sensação de primeira vez que se apoderava dele ao mergulhar naquele momento indescritível.

Deliciava-se.

A claridade daquele dia especialmente belo repetia em suas retinas as mesmas formas refletidas no vidro da janela do carro. E o resultado de toda aquela radiante maravilha, em suas variadas dimensões, era logo retido na alma do menino, explodindo em uníssono com as batidas de seu coração.

Um retumbante brado, transformado em pulsação...

Era um garoto franzino, dono de um sorriso tranquilo. Mas, suas traquinas meninas, dotadas de um brilho tão intenso que pareciam querer competir com o esplendor do astro que a tudo ali iluminava e coloria...

Estava alegre, o menino.

Alegre como o sol. Alegre como uma criança ao acordar e ver que seu melhor sonho estava acontecendo de verdade; na realidade. Estava acordado; não estava dormindo. Não estava...

Estava vivo.

O carro seguindo pela avenida da praia... Ele mimeografando os coqueiros, a areia, o intenso azul do mar e, no fundo, o horizonte. O horizonte inimaginável estava ali. Bem ali, ao alcance de seus olhos. Atingia, portanto, neste instante, o inatingível ponto. O dia estava lindo...

Perfeito.

E não era isso. Tinha mais do que a natureza e suas belezas infinitamente belas... Tinha as pessoas. Motoristas, famílias, crianças, velhinhos... Primeiro nos carros ao lado, depois os pedestres, transeuntes, pessoas no calçadão, pessoas correndo, pessoas de bicicleta; pessoas, pessoas, pessoas...

Gente.

E... Ele ali. Junto. Junto da gente. Uma paz muito grande dentro daquele automóvel. Família completa. Pai, mãe, irmã... Todos ali. Completamente novos. Completamente família, embora ainda não familiarizados com tanta alegria.

Renovados.

O sol forte reluzia sobre a pele ávida e ainda fria do menino, após quarenta dias aprisionado naquela escola. Quarenta dias sem poder sair daquele prédio; de uma sala à outra sendo a maior distância percorrida, desde o resultado da primeira prova.

Quarentena.

Os primeiros exames foram um baque e tanto. Fora pego de surpresa, o menino. Assim como sua família, amigos, colegas... As chances de passar eram remotas. Muito remotas.

E foi então que o curso intensivo teve início.

Não fazia ideia, o menino. A menor ideia do quão séria era a sua situação. Talvez não houvesse nem chance de recuperação. Momentos muito difíceis seriam necessários. O desgaste seria intenso; proporcional à sua resistência física e mental.

Quando a médica lhe disse a longa frase, com as três versões do exame na mão, foi trazendo todas as palavras para frente do ponto em questão. Todas as longas horas de espera, as horas na antessala daquela emergência, foram então explicadas.

Tudo fora refeito.

Por isso as horas... E a longa frase que ainda lhe apresentaria vários personagens novos, de futura convivência diária. A sentença proferindo-se e alongando-se na mesma proporção que a certeza de que haveria realmente algo de errado no final.

Algo errado com o menino.

Leucócitos, monócitos, hematócritos, hieróglifos... Todos trazidos para frente daquele singelo par. Um L e um A. E estava a resposta. Aquela era a sigla cujo significado a tudo tanto complicava...

Mas tinha cura.

E, como um mantra, a verdadeira notícia contida naquela frase, antes mesmo de seu término, ia sendo mentalmente repetida pelo menino.

Tem cura...

Ecoando por todas as partes do interior daquela sala de emergência, a poderosa palavra jorrava como sangue nas paredes, transformando-se então em esperança. A escrita em sangue.

No sangue do menino.

Não havia mais volta. Nem muitas opções também. E, mesmo agora, saindo pela primeira vez de sua escola, encarando o horizonte estendido sobre o azul do mar daquele dia todo especial, o futuro era incerto. Mas ele era outro. E sabia também a quem o futuro pertencia.

Ele era o agora.

Ele era o menino improvável de ontem; o impossível de antes. O talvez, quem sabe, amanhã... Ele era o hoje.

E hoje estava um dia lindo...


* * *