sexta-feira, 12 de junho de 2009

O Menino

por Ricardo Gnecco Falco

Pela janela do carro passavam os prédios, enfileirados. Imponentes, resistentes, pacientes. Misturavam-se ao azul do imenso céu que se sobrepunha a todo o cenário em volta. Eram como mergulhadores de concreto sobre trampolins de rua, à beira de uma enorme piscina às avessas.

O garoto estava sentado no banco de trás do veículo, olhando para cima, mas parecia flutuar à frente de tudo aquilo; admirado com a sensação de primeira vez que se apoderava dele ao mergulhar naquele momento indescritível.

Deliciava-se.

A claridade daquele dia especialmente belo repetia em suas retinas as mesmas formas refletidas no vidro da janela do carro. E o resultado de toda aquela radiante maravilha, em suas variadas dimensões, era logo retido na alma do menino, explodindo em uníssono com as batidas de seu coração.

Um retumbante brado, transformado em pulsação...

Era um garoto franzino, dono de um sorriso tranquilo. Mas, suas traquinas meninas, dotadas de um brilho tão intenso que pareciam querer competir com o esplendor do astro que a tudo ali iluminava e coloria...

Estava alegre, o menino.

Alegre como o sol. Alegre como uma criança ao acordar e ver que seu melhor sonho estava acontecendo de verdade; na realidade. Estava acordado; não estava dormindo. Não estava...

Estava vivo.

O carro seguindo pela avenida da praia... Ele mimeografando os coqueiros, a areia, o intenso azul do mar e, no fundo, o horizonte. O horizonte inimaginável estava ali. Bem ali, ao alcance de seus olhos. Atingia, portanto, neste instante, o inatingível ponto. O dia estava lindo...

Perfeito.

E não era isso. Tinha mais do que a natureza e suas belezas infinitamente belas... Tinha as pessoas. Motoristas, famílias, crianças, velhinhos... Primeiro nos carros ao lado, depois os pedestres, transeuntes, pessoas no calçadão, pessoas correndo, pessoas de bicicleta; pessoas, pessoas, pessoas...

Gente.

E... Ele ali. Junto. Junto da gente. Uma paz muito grande dentro daquele automóvel. Família completa. Pai, mãe, irmã... Todos ali. Completamente novos. Completamente família, embora ainda não familiarizados com tanta alegria.

Renovados.

O sol forte reluzia sobre a pele ávida e ainda fria do menino, após quarenta dias aprisionado naquela escola. Quarenta dias sem poder sair daquele prédio; de uma sala à outra sendo a maior distância percorrida, desde o resultado da primeira prova.

Quarentena.

Os primeiros exames foram um baque e tanto. Fora pego de surpresa, o menino. Assim como sua família, amigos, colegas... As chances de passar eram remotas. Muito remotas.

E foi então que o curso intensivo teve início.

Não fazia ideia, o menino. A menor ideia do quão séria era a sua situação. Talvez não houvesse nem chance de recuperação. Momentos muito difíceis seriam necessários. O desgaste seria intenso; proporcional à sua resistência física e mental.

Quando a médica lhe disse a longa frase, com as três versões do exame na mão, foi trazendo todas as palavras para frente do ponto em questão. Todas as longas horas de espera, as horas na antessala daquela emergência, foram então explicadas.

Tudo fora refeito.

Por isso as horas... E a longa frase que ainda lhe apresentaria vários personagens novos, de futura convivência diária. A sentença proferindo-se e alongando-se na mesma proporção que a certeza de que haveria realmente algo de errado no final.

Algo errado com o menino.

Leucócitos, monócitos, hematócritos, hieróglifos... Todos trazidos para frente daquele singelo par. Um L e um A. E estava a resposta. Aquela era a sigla cujo significado a tudo tanto complicava...

Mas tinha cura.

E, como um mantra, a verdadeira notícia contida naquela frase, antes mesmo de seu término, ia sendo mentalmente repetida pelo menino.

Tem cura...

Ecoando por todas as partes do interior daquela sala de emergência, a poderosa palavra jorrava como sangue nas paredes, transformando-se então em esperança. A escrita em sangue.

No sangue do menino.

Não havia mais volta. Nem muitas opções também. E, mesmo agora, saindo pela primeira vez de sua escola, encarando o horizonte estendido sobre o azul do mar daquele dia todo especial, o futuro era incerto. Mas ele era outro. E sabia também a quem o futuro pertencia.

Ele era o agora.

Ele era o menino improvável de ontem; o impossível de antes. O talvez, quem sabe, amanhã... Ele era o hoje.

E hoje estava um dia lindo...


* * *




4 comentários:

  1. Este conto foi publicado na antologia "Novos Talentos do Conto Brasileiro", edição 2009, pela CBJE.

    Abaixo, link do conto na antologia online da editora:

    http://www.camarabrasileira.com/ntc09-025.htm

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  2. Lindo, lindo, lindo demais. Especialmente essa frase do final: "Ele era o menino improvável de ontem; o impossível de antes. O talvez, quem sabe, amanhã... Ele era o hoje."

    Muito lindo, parabéns!

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  3. Amei esse conto quando li a primeira vez, quanta sensibilidade agarradinha com realidade! É sempre um prazer reler!

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