quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

O Regresso

por Ricardo G. Falco.



Quando a página finalmente desprendeu-se da lombada do livro já tinham se passado trinta e cinco anos. Trinta e cinco anos de uma luta que, agora, realmente comprovava-se em vão. A lei da Física vencera. A gravidade, por último, mostrara-se mais forte.

Mas foram anos também de intenso aprendizado; de imensa aceitação e — Por que não? — de indiscutível regozijo.

Voando pela imensidão daqueles intermináveis segundos, num inigualável sentimento de liberdade e missão, a amarelada folha pousara exatamente à frente de João. E, do infinito inatingível contido naquela esquecida página, pôde então a envelhecida tinta chamar-lhe a atenção.

Era a data de seu aniversário. Doze de setembro de mil novecentos e setenta e cinco. O exato dia, mês e ano de seu nascimento. E, pela primeira vez em toda a sua vida, João teve a certeza da hora exata de seu natalício: dez e dezessete da manhã. Não poderia ser diferente.

O tiro fora perfeito.

Seria uma excepcional chance; uma extraordinária ocasião. Um momento insólito; único. Nem ontem, nem amanhã e nem em nenhum outro instante o impacto daquela coincidência surtiria o efeito desesperadamente — foram trinta e cinco anos! — desejado.

Aquela folha continha a senha mágica que viria a se tornar o tão esperado ingresso para a viagem de volta à origem. De ambos: livro e homem.

Regresso.

Ao encontrar a esquecida publicação de onde a velha folha desprendera-se, lá do alto da estante, João finalmente compreendeu a lição.

Preso a fotografias, cartas, selos e memórias impróprias, chegava ao final de um longo e revolto ciclo. Órfão após poucos minutos de seu nascimento, João passara a vida inteira culpando-se pela morte da mãe, cuja falta sentia em cada segundo de sua triste e vazia existência.

Mas aquele livro; aquele velho e empoeirado livro, trazia muito mais do que a exata data de seu nascimento estampada na forma de um carimbo. Aquele livro trazia-lhe a paz. A cura.

A liberdade.

Ninguém entenderia a origem do belo e intenso sorriso no rosto do rapaz, diante do balcão de entrega, pouco tempo depois. A nova gerente da biblioteca preocupava-se mais em chegar ao valor aproximado da dívida a ser paga. Um verdadeiro absurdo! Do tamanho do descaso que aquele antigo carimbo delatava...

Ligou para a diretora da instituição que, de imediato, desceu até o térreo para averiguar a veracidade do inusitado fato. Uma senhora já idosa, mas de aparência dócil e sábia, adquirida ao longo de décadas e décadas de vida. Boa parte destas, por sinal, dedicadas ao serviço naquela biblioteca, sua verdadeira paixão.

E, nestes anos todos, não se lembrava de ter visto algum caso sequer parecido com aquele. Na verdade, já não se recordava de muitas coisas... Mas, engraçado, ao olhar para o enorme e brilhante sorriso no rosto daquele rapaz, podia jurar que já o tinha visto antes, na face de uma bela e radiante jovem, que entrara em trabalho de parto bem ali, na frente daquele balcão.

Trinta e cinco anos atrás.



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