quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Delirium Tropicalis

por Ricardo Gnecco Falco



Avistara a mesa recém-liberada do outro lado do salão.

O restaurante estava lotado. O centro da cidade estava lotado. O metrô, pela manhã, lotado. As calçadas, já na hora do almoço, lotadas. A galeria, o elevador... Provavelmente, lembrou-se das pilhas de relatórios que lotavam sua sala em algum prédio próximo àquela rua, também lotada.

Correu.

Aquele seria possivelmente o único momento somente dele no dia e, driblando as bolsas dependuradas nas costas das cadeiras, percorreu com desenvoltura o labirinto formado entre as mesas lotadas de clientes famintos. Gente como ele. Executivos, consultores, empresários... E, sem parcimônia, se jogou à frente das duas estupefatas moças que já se preparavam para a posse daquele almejado pedaço de madeira.

Praticamente delas.

Duas jovens secretárias, uma delas visivelmente grávida, e que há bastante tempo esperavam o longo final da degustação que o casal anteriormente ali sentado teimara em empreender, descompassivo ao extremo. Cercaram a área ao redor do disputado altar que exaltavam em silêncio com os olhos e, então... Aquilo.

Uma verdadeira invasão bárbara.

O rapaz traçara uma rota inimaginável por entre as apertadas mesas do estabelecimento, atingindo, com maestria, o solo no qual fincara sua bandeja contendo o prato de salada, talheres e a garrafinha de mate natural. Da casa. Nada nem ninguém ali conseguiria ser mais cruel, insensível e maquiavélico do que ele.

As coitadas das moças, indefesas, de bandejas nas mãos e incredulidade nos rostos, não puderam contar sequer com os olhares possivelmente recriminadores das pessoas em volta. Mesmo cercadas por tanta gente, as duas tornaram-se vítimas passivas de um crime sem testemunhas, ou registro. Praticamente, ninguém viu ou percebeu o desenrolar daquela cena; daquela manobra asquerosa, covarde.

Uma perfeita jogada de mestre.

Mesmo que trapaceiro, cruel, insensível... Mas sim, um mestre. O rapaz parecia realmente nem se incomodar com o ato que cometera. Como se “se dar bem” fosse o lema de sua vida e um glorioso destino pertencesse indubitavelmente aos mais espertos, como certamente ele se julgava. Demostrava, de fato, estar orgulhoso de si e de suas atitudes.

Desdém.

Mas, mesmo do alto de sua aparente prepotência, não percebera a senhora que o observava de longe. Na verdade, quase ninguém notou a mulher sentada do outro lado do salão, na ponta oposta ao local do ocorrido.  

Uma senhora muito estranha.

Aparentando sabe-se lá qual idade, levantou-se calmamente. Pegou sua bandeja com o prato já vazio e, arrastando sua longa saia, caminhou, da mesma maneira que se erguera, até as duas moças, ainda paradas, de pé, no centro do salão, à procura de algum lugar onde pudessem, finalmente, agora apenas deglutir o conteúdo já gelado de seus pratos.

Mostrou-lhes a mesa estranhamente ainda vazia de onde saíra e, na sequência, terminou seu trajeto bem ao lado do jovem executivo, entretido com sua comida saudável. Então, no exato momento em que as duas mulheres, enfim, arrumavam-se na outra mesa, no extremo oposto do salão, ela sentou-se calmamente diante dele.

Uma senhora de feições oblíquas.

Não conseguiu entender sequer uma das várias palavras que a velha proferiu, pois com o restaurante lotado, em plena hora do almoço no centro da cidade, o barulho estava uma loucura. Parecia outra língua. Talvez Latim; ou algum dialeto há muito esquecido. O fato é que o tom ameno com que foram ditas estas palavras contrastava e muito com o brilho que recebia daquele par de olhos sinistros, fixados nos seus como lanças afiadas.

Mumificados.

Perdeu a fome. A noção do tempo e espaço. As batidas do coração, audição, tato. Até a cor. À noite, sonhou com aquela figura estranha e com o som tenebroso daquelas palavras repletas de significados desconhecidos.

Ficou algumas semanas sem aparecer novamente naquele estabelecimento.

Quando deu as caras finalmente por lá, estava bem diferente. Mais magro, abatido, com olheiras gigantescas e um olhar desesperador. Tenso, ao extremo. Mas, ao avistar o conhecido salão completamente lotado, pareceu formar-se um micro sorriso no canto de sua boca. Correu no instante em que percebeu uma mesa a vagar.

Sentou-se, com muita pressa.

Comia tão rápido que as pessoas em volta chegavam a comentar. Entre uma garfada e outra, olhava em todas as direções, como se um perigo iminente pudesse surgir de qualquer parte, num ângulo de 360 graus naquele salão.

Atormentado.

Talvez por causa de seu agir nervoso, o grupo da mesa ao lado terminou rapidamente a rodada de sobremesa e não tardou em levantar. Mal as pessoas retiraram as bandejas de cima da mesa, o bem vestido rapaz praticamente saltou de onde estava, ainda mastigando alguma coisa, para cima dela.

Afoito.

E a manobra repetiu-se por diversas vezes, aumentando gradativamente o mal-estar que acabou tomando conta de todo o salão. Várias pessoas deixaram o restaurante às pressas e muitos clientes abandonaram seus pratos ainda não terminados.

Assustados com aquilo.

O homem não conseguia mais ficar parado em uma mesa só. A única exceção era se todas as demais estivessem lotadas. Se alguma vagasse, mesmo que do outro lado do salão, ele levantava e saía correndo, desesperado, com a bandeja na mão, até alcançar esta nova mesa liberada e nela arranjar-se. Podia estar no meio de uma garfada, ou acabado de sentar-se, o que fosse...

Ele era impelido sempre a pular para a próxima mesa que vagasse.

Isto lhe causara um estado de nervos tão desconcertante que em suas feições podia-se ver uma angústia profunda. O oposto do que fora visto naquela vez, semanas atrás, quando ele parecia feliz com o seu “feito”; como se estivesse mesmo contente pela pernada que conseguira dar naquelas duas coitadas, roubando-lhes a mesa e rapidamente acomodando-se, em meio ao restaurante lotado.

Satisfação.

Diferentemente de agora, pois a amarga expressão no rosto deste aflito rapaz denotava extremo cansaço. Era como se fosse obrigado a fazer aquilo. Como se agisse daquela forma insana, involuntariamente. Um cacoete desesperador.

Uma sina.

Ou praga. Pois sua até então confortável vida virara do avesso no exato instante em que cruzara com aquela intrigante senhora... Esta sim, aterrorizante. E nunca mais a vira novamente. Passara a tomar diversos remédios, a maioria com tarjas pretas. Mas, sentia-se diferente.

Ele havia mudado.

Outro dia, no metrô, na volta para casa, teve os pensamentos interrompidos pela movimentação dentro do coletivo lotado que, ao parar em uma das estações, acolheu mais alguns viajantes. Dentre eles, uma moça, grávida, de aparência cansada.

Para quem, de imediato, fez questão de ceder seu lugar...


* * *

2 comentários:

  1. Eu acho interessante que o sentimento de impunidade e injustiça estejam crescendo tão desesperadoramente na nossa sociedade que vemos-nos obrigados a esperar algum tipo de justiça sobrenatural, ja que as autoridades que deveriam nos garantir os direitos são as primeiras a nega-los.
    Um bom conto e um bom castigo. Afinal, o mundo esta cheio demais desses espertalhões e um a menos não faz mesmo a menor falta!

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  2. Interessante seu ponto de vista, Monstrinha!
    A impunidade "nunca antes em nosso país" esteve tão enfática como agora...
    Que o "sobrenatural" então providencie um bom castigo para os espertalhões de nossa bem conceituada capital, que certamente não farão a menor falta!
    Valeu pela visita, leitura e comentário!
    Abração,

    Paz e Bem!

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